Todas as regras de comportamento dentro do terreiro remetem a estrito sistema de preceitos e proibições. Na maioria das vezes, no entanto, tais normas não são explicadas verbalmente. Cabe aos noviços observarem o comportamento dos mais velhos, tirarem suas próprias conclusões - jamais devem fazer perguntas - e tentar acertar por sua conta e risco. Pois o desrespeito às regras é imediatamente apontado. Cochichos dos demais, ironias dos mais velhos, suave reprimenda ou violenta repreensão da mãe (ou pai) de santo, todas as espécies possíveis de censura sancionam na hora o menor deslize. Ao mesmo tempo, contudo, há situações em que a infração é, por assim dizer, incentivada. Quizila é coisa muito séria.
"Em Angola", escreve Alfonso da Silva Rego (citado por Crossard - Binon,1981, p.134), "existe uma palavra que exprime uma idéia que encontramos em todos os lugares, a idéia daquilo que não é bom, que não convém, que é contrario à tradição ou à etiqueta, aquilo que se deve fazer etc. É a palavra Kijila". Formado a partir o étimo quimbundo, o termo quizila expressa, nos terreiros brasileiros, exatamente a mesma coisa, relativa a todas as filigranas dos preceitos e das proibições, e, mais especificamente, às interdições ligadas à idiossincrasias do "dono da cabeça" de cada iniciado. "É quizila do meu santo", eis uma das frases mais ouvidas em todos os terreiros, sejam de origem bantu ou nagô. A palavra quizila será utilizada, de preferência ao termo euó, forma brasileira do iorubá èèwò, de uso bem mais restrito no cotidiano dos terreiros.
Descrevendo as aprendizagens da filha de santo, Giselle Crossard-Binon enumera vários tipos de quizilas, insistindo no seu caráter rigoroso, mas não deixa de registrar episódios nos quais ate o próprio pai de santo infringe proibições publicamente. Nesse caso, precauções verbais são tomadas, para que a divindade não possa perceber "a ofensa que se lhe faz"(1981, p.136). Esse tipo de malandragem é bem freqüente nos terreiros. Chamar abóbora de "inhame vermelho", ou caranguejo de siri, é meio de contornar as situações. Mas a proibição permanece. A infração, ainda que jocosamente esvaziada do significado transgressor, parece paradoxalmente sublinhar a intangibilidade da lei.
A transgressão é enfocada como algo obviamente negativo, destruidor, indesejável. O que se observa do caso do terreiro é um mecanismo muito mais complexo. A transgressão é ao mesmo tempo sancionada e incentivada. No comportamento diário, não somente falhas são insinuadas, como se deixa de prestar informações explicitas sobre o conjunto de regras e, ainda, uma das poucas normas de conduta claramente ensinadas ao neófito é que ele não deve fazer perguntas.
Um dos aspectos importantes da transgressão é permitir o esclarecimento das normas, pois, "o sentido preciso de uma regra raramente é obvio a partir apenas de sua afirmação verbal"(p.26). No caso do terreiro, onde o conhecimento, por iniciático, é antes vivenciado do que verbalizado, é provável que ocorra mecanismo semelhante. aprendem-se os limites, verificando empiricamente se foram ou não ultrapassados. Poder-se-ia logo identificar, no sutil incentivo à transgressão, como que uma finalidade pedagógica. O neófito, quando menos espera, vê desabar sobre si a ira dos sacerdotes. É provável que jamais esquecerá a lição.
Proibição, transgressão, sanção e castigo definem-se reciprocamente, desenhando em filigrana o arcabouço das rígidas leis que organizam o campo do sagrado. Nessa perspectiva, o tabu é definido como aquilo que não pode ser transgredido, e, no discurso do terreiro, a quizila expressa a mesma rigidez: "proibição ritual, determinada pelo orixá, no seu culto, impondo interdições, temporárias ou definitivas, a seus filhos" (Cacciatore, 1977, p.232). Na pratica diária, no entanto, o comportamento dos fieis parece ecoar a aparente boutade de Mauss: "os tabus são feitos para serem violados"(Metraux, 1963, p.683).
Opondo-se ao discurso da lei e do senso comum, que vêem no tabu o preço que se paga para lidar com o sagrado, Mauss opera instigante inversão. Não seria a transgressão a própria fonte do sagrado?
"A transgressão organizada forma, com a proibição, um conjunto que define a vida social. A freqüência das transgressões, que ocorrem com regularidade, não invalida a firmeza intangível da proibição, da qual sempre constitui o esperado complemento - do mesmo modo que o movimento da diástole completa a sístole (...). Proibição e transgressão correspondem a esses movimentos contraditórios a proibição rejeita, mas o fascínio leva à transgressão..." (Bataille, 1957, p. 73).
Proibições delimitam. Transgressões rompem as barreiras, instaurando o perigoso reino das margens, mas os poderes da ambigüidade são tais, que é precisamente a transgressão que vai afirmar a imprescindibilidade dos limites. Deste modo, não se pode considerar a transgressão como algo acidental ou contingente. A relação proibição/transgressão constitui articulação necessária à definição dos limites e à dinamização do sistema.
Os autores que estudam cultos africanos tradicionais na antiga Costa dos Escravos, e particularmente entre os grupos que deram origem ao candomblé brasileiro, assinalaram a presença constante de preceitos e proibições sem, no entanto, dedicar-lhes espaço especifico.
Assim é que Verger, em suas monumentais Notes sur le culte des orisa et vodun (1957), informa quais são os interditos de algumas poucas entre as divindades cultuadas na Nigéria, Benim e Togo. Em compensação, descreve pormenorizadamente o comportamento ritual dos sacerdotes frente à violação de uma proibição, no antigo Daomé.Expressando todos os sinais de intensa raiva, o sacerdote sai correndo pelas ruas gritando "oma, oma", para exigir reparação. A queixa é julgada por um conselho que resolve se vai aceitá-la, ou não. Se for aceita, os adeptos do vodum ofendido participam do ritual de oma durante nove dias seguintes. Consiste em adotar comportamento aberrante. Vestindo-se de modo extravagante, usando cabaças rachadas ou panelas quebradas à guisa de chapéu, e colares feitos com frutas podres e velhos carretéis, armados de porretes, os participantes do oma cantam e insultam o culpado. Este deverá expressar arrependimento e pagar multa para reparar seu erro. Acrescenta Verger que, "depois de o oma acabar, ninguém deverá aludir aos cantos nem aos insultos que foram proferidos, sob pena de cometer, por sua vez, transgressão passível de oma"(1957, p.567).
Herskovits (1938), em seu exaustivo retrato do antigo Daomé, hoje Benim, assinala a força dos tabus em todos os instantes da vida do daomeano.
"Estritamente falando, os tabus são chamados sú dúdú ('coisa proibida de comer'), enquanto as coisas que se devem fazer são chamadas de nowaídô"(1938, p.160), o que parece corresponder aquilo que, nos terreiros, se chama de "preceitos". Prossegue Herskovits: "(os tabus), como a própria filiação ao sib, são herdados do pai e devem ser observados por toda a vida. Se alguém cometer violação de seus tabus alimentares, voluntariamente ou não, e ficar calado a esse respeito, sofrerá erupção na pele, chamada salawà, dentro de dez a quinze dias"(id.ib..). Somente com um banho de folhas permitirá remove-la. De tal modo que, ao se convidar as pessoas para o almoço, é aconselhável perguntar as proibições alimentares de cada uma.
Herskovits é um dos poucos autores que descrevem conjuntamente proibição, transgressão, castigo e reparação. A imagem que nos transmite da cultura daomeana tradicional sugere um mundo rigidamente ordenado, cheio de proibições e de castigos definitivos. Por exemplo, a atividade dos caçadores é rodeada de mil preceitos e interdições. Quando o marido vai caçar, é vedado à mulher dele comer carne, senão, ela o expõe a ser atacado pelos bichos selvagens.
A agricultura, não menos relevante, é igualmente cercada de poder e perigos. Não se deve trabalhar no campo, no primeiro dia da semana, sob pena de ofender os deuses do "panteão das tormentas", que matam o culpado com raio. Os deuses da terra são ainda mais terríveis, Sakpatá, o maior dentre eles, manda como castigo todas as doenças de pele, incluindo lepra, varíola, e se tornou tão ameaçador que, conforme Verger (1957, p. 246), seu culto foi banido de toda a Nigéria, onde outrora o reverenciavam, sob o nome de Xapanã. Aos zeladores de Sakpatá é proibido comer várias caças e, particularmente, comer juntos certos cereais, que são o milho, o sorgo, o milhete, e tudo quanto é tipo de feijão, porque, dizem, "quem comer esses cereais juntos, come a terra"(Herskovits, 1938, vol.2, p.141). Esse aspecto de não comer o próprio material de o que deus é feito aparece freqüentemente nos temas míticos da Costa dos Escravos.
Os sacerdotes do "povo das águas"e, particularmente, de Agassú, antepassado mítico da família real do Daomé, não podem comer tartaruga, crustáceos, nem moluscos, por pertencerem ao mesmo elemento. Desenha-se, cada vez com maior nitidez, a proibição daquilo que poderíamos chamar de autofagia simbólica. Os filhos dos deuses, e seus zeladores, não podem comer daquilo que significa sua própria substancia, que é o fundamento de sua identidade mítica.
Os filhos de Keviosso não podem usar vermelho, porque deuses do "panteão das tormentas" são particularmente apegados ao vermelho". Do mesmo modo, gente de Sa Meji não pode lidar com bruxarias, por ser este o "signo" das feiticeiras.
A informação sobre as quizilas de cada um não funciona apenas como aviso profilático, no sentido de evitar a transgressão. Conhecer quais são as interdições de cada pessoa é meio de saber como lidar com ela. Facilita a observação das regras de cortesia e de precedência, mas pode também ser usado como arma.
A descrição dos rituais pelos africanistas leva a inserir outros componentes no binômio proibição/transgressão. O castigo certamente aparece, e visa a sancionar o desrespeito da lei. Entretanto que se introduza um terceiro momento, igualmente imprescindível na dinâmica do conjunto, a reparação. A oferenda contribui para a distribuição da força sagrada, e estabelece novos fluxos de comunicação. À medida que a transgressão implica reparação e esta, oferenda, os aspectos negativos, o castigo, a morte, somente aparecem quando ocorre uma parada no processo.
Vejamos a historia de Akinsa Emere, do odu Obará, que, em vez de entregar a oferenda aos deuses, resolveu parar o sistema de trocas, e simplesmente, comeu por conta própria a oferenda que deveria fazer. Engasgou e morreu.
"Akinsa emere nunca mais comeu.
Exu ficou dançando, se regozijando". (Bascom, 1980 p. 573).
À medida que a oferenda é classicamente considerada como representando simbolicamente o próprio ofertante, este é um caso extremado de autofagia. Não há sequer possibilidade de reparação.
No que diz respeito à vida cotidiana, mitos clássicos dos iorubás afirmam a importância de conhecer-se, para saber como comportar-se corretamente neste mundo. Tal conhecimento só pode ser alcançado mediante a consulta do oráculo, que dirá "de que material é feita a cabeça" de cada pessoa. Um texto oracular recolhido da boca de um sacerdote nigeriano por Juana Elbein dos Santos e Deoscóredes M. dos Santos (1971) explica que cada pessoa, antes de nascer, tem sua cabeça (orí) miticamente moldada no além (òrum), a partir de determinada matéria prima-ancestral (Ipòrí), cuja identificação, pelo oráculo, permitirá esclarecer qual é sua natureza verdadeira. Não somente a pessoa saberá que tipo de oferenda deve fazer para agradar os deuses, mas será também informada a respeito de "todas as coisas que lhe são prescritas como interdições (èèwò) proibidas de comer por causa da maneira como o orí foi moldado. (Santos e Santos, 1971, p.52). "Ifá dirá qual a divindade que deves servir, que coisa te é proibida e não deves comer. Pois não deves comer do mesmo corpo a partir do qual foi construída tua cabeça" (Herskovits 1938, id. ib. p. 53, grifo do autor). O esclarecimento das proibições rituais torna-se sinônimo da auto-identificação.
(Culto aos Orixás - Voduns e Ancestrais nas Religiões Afro-brasileiras, 2004, p.157/171)
Fonte: http://www.alaketu.com.br/
"Em Angola", escreve Alfonso da Silva Rego (citado por Crossard - Binon,1981, p.134), "existe uma palavra que exprime uma idéia que encontramos em todos os lugares, a idéia daquilo que não é bom, que não convém, que é contrario à tradição ou à etiqueta, aquilo que se deve fazer etc. É a palavra Kijila". Formado a partir o étimo quimbundo, o termo quizila expressa, nos terreiros brasileiros, exatamente a mesma coisa, relativa a todas as filigranas dos preceitos e das proibições, e, mais especificamente, às interdições ligadas à idiossincrasias do "dono da cabeça" de cada iniciado. "É quizila do meu santo", eis uma das frases mais ouvidas em todos os terreiros, sejam de origem bantu ou nagô. A palavra quizila será utilizada, de preferência ao termo euó, forma brasileira do iorubá èèwò, de uso bem mais restrito no cotidiano dos terreiros.
Descrevendo as aprendizagens da filha de santo, Giselle Crossard-Binon enumera vários tipos de quizilas, insistindo no seu caráter rigoroso, mas não deixa de registrar episódios nos quais ate o próprio pai de santo infringe proibições publicamente. Nesse caso, precauções verbais são tomadas, para que a divindade não possa perceber "a ofensa que se lhe faz"(1981, p.136). Esse tipo de malandragem é bem freqüente nos terreiros. Chamar abóbora de "inhame vermelho", ou caranguejo de siri, é meio de contornar as situações. Mas a proibição permanece. A infração, ainda que jocosamente esvaziada do significado transgressor, parece paradoxalmente sublinhar a intangibilidade da lei.
A transgressão é enfocada como algo obviamente negativo, destruidor, indesejável. O que se observa do caso do terreiro é um mecanismo muito mais complexo. A transgressão é ao mesmo tempo sancionada e incentivada. No comportamento diário, não somente falhas são insinuadas, como se deixa de prestar informações explicitas sobre o conjunto de regras e, ainda, uma das poucas normas de conduta claramente ensinadas ao neófito é que ele não deve fazer perguntas.
Um dos aspectos importantes da transgressão é permitir o esclarecimento das normas, pois, "o sentido preciso de uma regra raramente é obvio a partir apenas de sua afirmação verbal"(p.26). No caso do terreiro, onde o conhecimento, por iniciático, é antes vivenciado do que verbalizado, é provável que ocorra mecanismo semelhante. aprendem-se os limites, verificando empiricamente se foram ou não ultrapassados. Poder-se-ia logo identificar, no sutil incentivo à transgressão, como que uma finalidade pedagógica. O neófito, quando menos espera, vê desabar sobre si a ira dos sacerdotes. É provável que jamais esquecerá a lição.
Proibição, transgressão, sanção e castigo definem-se reciprocamente, desenhando em filigrana o arcabouço das rígidas leis que organizam o campo do sagrado. Nessa perspectiva, o tabu é definido como aquilo que não pode ser transgredido, e, no discurso do terreiro, a quizila expressa a mesma rigidez: "proibição ritual, determinada pelo orixá, no seu culto, impondo interdições, temporárias ou definitivas, a seus filhos" (Cacciatore, 1977, p.232). Na pratica diária, no entanto, o comportamento dos fieis parece ecoar a aparente boutade de Mauss: "os tabus são feitos para serem violados"(Metraux, 1963, p.683).
Opondo-se ao discurso da lei e do senso comum, que vêem no tabu o preço que se paga para lidar com o sagrado, Mauss opera instigante inversão. Não seria a transgressão a própria fonte do sagrado?
"A transgressão organizada forma, com a proibição, um conjunto que define a vida social. A freqüência das transgressões, que ocorrem com regularidade, não invalida a firmeza intangível da proibição, da qual sempre constitui o esperado complemento - do mesmo modo que o movimento da diástole completa a sístole (...). Proibição e transgressão correspondem a esses movimentos contraditórios a proibição rejeita, mas o fascínio leva à transgressão..." (Bataille, 1957, p. 73).
Proibições delimitam. Transgressões rompem as barreiras, instaurando o perigoso reino das margens, mas os poderes da ambigüidade são tais, que é precisamente a transgressão que vai afirmar a imprescindibilidade dos limites. Deste modo, não se pode considerar a transgressão como algo acidental ou contingente. A relação proibição/transgressão constitui articulação necessária à definição dos limites e à dinamização do sistema.
Os autores que estudam cultos africanos tradicionais na antiga Costa dos Escravos, e particularmente entre os grupos que deram origem ao candomblé brasileiro, assinalaram a presença constante de preceitos e proibições sem, no entanto, dedicar-lhes espaço especifico.
Assim é que Verger, em suas monumentais Notes sur le culte des orisa et vodun (1957), informa quais são os interditos de algumas poucas entre as divindades cultuadas na Nigéria, Benim e Togo. Em compensação, descreve pormenorizadamente o comportamento ritual dos sacerdotes frente à violação de uma proibição, no antigo Daomé.Expressando todos os sinais de intensa raiva, o sacerdote sai correndo pelas ruas gritando "oma, oma", para exigir reparação. A queixa é julgada por um conselho que resolve se vai aceitá-la, ou não. Se for aceita, os adeptos do vodum ofendido participam do ritual de oma durante nove dias seguintes. Consiste em adotar comportamento aberrante. Vestindo-se de modo extravagante, usando cabaças rachadas ou panelas quebradas à guisa de chapéu, e colares feitos com frutas podres e velhos carretéis, armados de porretes, os participantes do oma cantam e insultam o culpado. Este deverá expressar arrependimento e pagar multa para reparar seu erro. Acrescenta Verger que, "depois de o oma acabar, ninguém deverá aludir aos cantos nem aos insultos que foram proferidos, sob pena de cometer, por sua vez, transgressão passível de oma"(1957, p.567).
Herskovits (1938), em seu exaustivo retrato do antigo Daomé, hoje Benim, assinala a força dos tabus em todos os instantes da vida do daomeano.
"Estritamente falando, os tabus são chamados sú dúdú ('coisa proibida de comer'), enquanto as coisas que se devem fazer são chamadas de nowaídô"(1938, p.160), o que parece corresponder aquilo que, nos terreiros, se chama de "preceitos". Prossegue Herskovits: "(os tabus), como a própria filiação ao sib, são herdados do pai e devem ser observados por toda a vida. Se alguém cometer violação de seus tabus alimentares, voluntariamente ou não, e ficar calado a esse respeito, sofrerá erupção na pele, chamada salawà, dentro de dez a quinze dias"(id.ib..). Somente com um banho de folhas permitirá remove-la. De tal modo que, ao se convidar as pessoas para o almoço, é aconselhável perguntar as proibições alimentares de cada uma.
Herskovits é um dos poucos autores que descrevem conjuntamente proibição, transgressão, castigo e reparação. A imagem que nos transmite da cultura daomeana tradicional sugere um mundo rigidamente ordenado, cheio de proibições e de castigos definitivos. Por exemplo, a atividade dos caçadores é rodeada de mil preceitos e interdições. Quando o marido vai caçar, é vedado à mulher dele comer carne, senão, ela o expõe a ser atacado pelos bichos selvagens.
A agricultura, não menos relevante, é igualmente cercada de poder e perigos. Não se deve trabalhar no campo, no primeiro dia da semana, sob pena de ofender os deuses do "panteão das tormentas", que matam o culpado com raio. Os deuses da terra são ainda mais terríveis, Sakpatá, o maior dentre eles, manda como castigo todas as doenças de pele, incluindo lepra, varíola, e se tornou tão ameaçador que, conforme Verger (1957, p. 246), seu culto foi banido de toda a Nigéria, onde outrora o reverenciavam, sob o nome de Xapanã. Aos zeladores de Sakpatá é proibido comer várias caças e, particularmente, comer juntos certos cereais, que são o milho, o sorgo, o milhete, e tudo quanto é tipo de feijão, porque, dizem, "quem comer esses cereais juntos, come a terra"(Herskovits, 1938, vol.2, p.141). Esse aspecto de não comer o próprio material de o que deus é feito aparece freqüentemente nos temas míticos da Costa dos Escravos.
Os sacerdotes do "povo das águas"e, particularmente, de Agassú, antepassado mítico da família real do Daomé, não podem comer tartaruga, crustáceos, nem moluscos, por pertencerem ao mesmo elemento. Desenha-se, cada vez com maior nitidez, a proibição daquilo que poderíamos chamar de autofagia simbólica. Os filhos dos deuses, e seus zeladores, não podem comer daquilo que significa sua própria substancia, que é o fundamento de sua identidade mítica.
Os filhos de Keviosso não podem usar vermelho, porque deuses do "panteão das tormentas" são particularmente apegados ao vermelho". Do mesmo modo, gente de Sa Meji não pode lidar com bruxarias, por ser este o "signo" das feiticeiras.
A informação sobre as quizilas de cada um não funciona apenas como aviso profilático, no sentido de evitar a transgressão. Conhecer quais são as interdições de cada pessoa é meio de saber como lidar com ela. Facilita a observação das regras de cortesia e de precedência, mas pode também ser usado como arma.
A descrição dos rituais pelos africanistas leva a inserir outros componentes no binômio proibição/transgressão. O castigo certamente aparece, e visa a sancionar o desrespeito da lei. Entretanto que se introduza um terceiro momento, igualmente imprescindível na dinâmica do conjunto, a reparação. A oferenda contribui para a distribuição da força sagrada, e estabelece novos fluxos de comunicação. À medida que a transgressão implica reparação e esta, oferenda, os aspectos negativos, o castigo, a morte, somente aparecem quando ocorre uma parada no processo.
Vejamos a historia de Akinsa Emere, do odu Obará, que, em vez de entregar a oferenda aos deuses, resolveu parar o sistema de trocas, e simplesmente, comeu por conta própria a oferenda que deveria fazer. Engasgou e morreu.
"Akinsa emere nunca mais comeu.
Exu ficou dançando, se regozijando". (Bascom, 1980 p. 573).
À medida que a oferenda é classicamente considerada como representando simbolicamente o próprio ofertante, este é um caso extremado de autofagia. Não há sequer possibilidade de reparação.
No que diz respeito à vida cotidiana, mitos clássicos dos iorubás afirmam a importância de conhecer-se, para saber como comportar-se corretamente neste mundo. Tal conhecimento só pode ser alcançado mediante a consulta do oráculo, que dirá "de que material é feita a cabeça" de cada pessoa. Um texto oracular recolhido da boca de um sacerdote nigeriano por Juana Elbein dos Santos e Deoscóredes M. dos Santos (1971) explica que cada pessoa, antes de nascer, tem sua cabeça (orí) miticamente moldada no além (òrum), a partir de determinada matéria prima-ancestral (Ipòrí), cuja identificação, pelo oráculo, permitirá esclarecer qual é sua natureza verdadeira. Não somente a pessoa saberá que tipo de oferenda deve fazer para agradar os deuses, mas será também informada a respeito de "todas as coisas que lhe são prescritas como interdições (èèwò) proibidas de comer por causa da maneira como o orí foi moldado. (Santos e Santos, 1971, p.52). "Ifá dirá qual a divindade que deves servir, que coisa te é proibida e não deves comer. Pois não deves comer do mesmo corpo a partir do qual foi construída tua cabeça" (Herskovits 1938, id. ib. p. 53, grifo do autor). O esclarecimento das proibições rituais torna-se sinônimo da auto-identificação.
(Culto aos Orixás - Voduns e Ancestrais nas Religiões Afro-brasileiras, 2004, p.157/171)
Fonte: http://www.alaketu.com.br/