Cada vez que peixes aparecem boiando no bicentenário Dique do Tororó, em Salvador, uma lenda urbana volta à tona: a de que o responsável pela mortandade de tilápias e carpas, quase todo verão, não é a poluição, mas as oito belas esculturas de entidades africanas que enfeitam o local, considerado pelos seguidores do candomblé uma das moradas de Oxum, orixá da água doce, fontes e lagos. Concebidas em 2000 pelo escultor Tatti Moreno, as oito figuras de orixás são emblemáticas da disputa entre os neopentecostais e os seguidores da religião afro-baiana na capital, que reagem com uma campanha nacional contra a intolerância religiosa.
A ideia não é partir para o confronto, embora nos últimos anos tenham sido frequentes as agressões de evangélicos, sobretudo fiéis da Igreja Universal e da Evangelho Quadrangular, aos adeptos das religiões de matrizes africanas, nomenclatura adotada pelas gentes da umbanda e do candomblé. A principal meta é mesmo corrigir as estatísticas, a partir do Censo 2010 do IBGE. Com o slogan “Quem é de axé diz que é”, pretende-se conscientizar as pessoas da importância de assumirem o credo em religião afro-brasileira. No último Censo, em 2000, só 0,5% dos soteropolitanos afirmaram ser praticantes da umbanda e do candomblé, ante 18,1% que se declararam evangélicos.
“Essa postura, que se justificava quando o candomblé era perseguido pela polícia, não é mais necessária. Estatisticamente, dá a impressão de que o candomblé está desaparecendo, o que é um engano”, afirma o vereador Gilmar Santiago. Uma das evidências disso seria o aumento do número de terreiros. Nas duas últimas décadas, de acordo com o mapeamento feito pela prefeitura, apareceram 677 novos na capital baiana.
Em compensação, Salvador viu surgir em 2001 um dos maiores templos da Igreja Universal no País, com capacidade para 9 mil fiéis. As baianas do acarajé, figuras-símbolo do candomblé, hoje encontram rivais nas vendedoras de “bolinho de Jesus”, que se recusam a associar o quitute a uma oferenda aos orixás.
Historicamente, o preconceito em relação aos seguidores do candomblé não pode ser atribuído aos protestantes, mas aos primeiros colonizadores europeus, ainda em território africano, segundo estudiosos da religião. Com o tempo, o estigma de que a crença se baseia em feitiços, despachos e magia negra espalhou-se. Mas é inegável que a convivência entre evangélicos, principalmente neopentecostais, e seguidores do candomblé se deteriora nos últimos anos, a partir do lançamento, pelo bispo Edir Macedo, do livro Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios?, que fortaleceu o preconceito e renovou a difusão de mitos sobre as religiões afro-brasileiras.
Na obra, com mais de 3 milhões de exemplares vendidos, retirada das livrarias pela Justiça, o fundador da Igreja Universal acusa os orixás, assim como os espíritos do kardecismo, de serem demônios disfarçados. (Procurada, a direção da Igreja Universal não respondeu às perguntas da reportagem.) Em geral, os bispos neopentecostais se aproveitam da associação clássica entre a figura de Exu e Satanás. Por conta disso, outra iniciativa da campanha movida pelas entidades do movimento negro vai ser a distribuição de uma cartilha como introdução às religiões de matrizes africanas a praticantes de outros credos. Exu será o principal orixá a ser “explicado”.
Em Salvador, na noite da terça-feira 12 de maio, a reportagem de CartaCapital está à mesa com cerca de vinte pais e mães de santo que participam do Fórum Permanente de Religiões de Matrizes Africanas, no terreiro de Oxumarê, do século XIX. Pergunto se esse preconceito não é gerado também pelo fato de o candomblé, em virtude das perseguições policiais que tiveram seu auge na década de 1920, ser uma religião fechada, quase secreta. E a mesa, já bastante desconfiada com a presença da repórter, entra em polvorosa. “Fechada é a Maçonaria”, diz um. “Muito aberta não é, não”, rebate outro. “O terreiro fica aberto o dia todo, não é que nem igreja. Só não entra quem não quer”, defende Marcos Rezende, do CEN, que é também ogã (espécie de administrador) do terreiro anfitrião. “O que não fazemos é proselitismo.”
Em Salvador, são frequentes as notícias de invasões de terreiros por evangélicos com bíblias em punho e agressões verbais aos que andam paramentados com roupa branca, torços (turbantes) e colares de contas coloridas. As queixas são encaminhadas ao promotor Almiro Sena, coordenador do Grupo Especial de Combate à Discriminação do Ministério Público Estadual.
“As pessoas identificadas com o candomblé por suas vestimentas ainda hoje têm dificuldade de acesso a edifícios públicos. São obrigadas, por exemplo, a tirar os torços da cabeça”, relata o promotor Sena, que vê, no entanto, uma diminuição da intolerância nos últimos anos. Na mesa do terreiro de Oxumarê, o Táta (pai de santo) Ricardo Tavares, do terreiro de Lembá, em Camaçari, discorda.
Branco, 1,84 metro de altura, Tavares chama a atenção com suas vestes africanas. Ele conta que seu terreiro já foi invadido por evangélicos, que lhe cuspiram na cara durante o fórum da cidade. “Não sou omisso, dou queixa”, diz o pai de santo, que promove em Camaçari uma campanha de combate à intolerância religiosa e ao racismo, sob o lema “Sou do candomblé. Respeitar é preciso. Gostar, se quiser”.
Lindinalva de Paula, do terreiro Ilê Axé Omin Ewá, no bairro de Praia Grande, conta que os ataques feitos em programas de televisão e por bispos nos púlpitos de fato diminuíram, mas as ações isoladas permanecem. “Numa sexta-feira em Salvador, em um ônibus lotado, há evangélicos que preferem ficar de pé a se sentar ao lado de uma pessoa de branco, porque sabe que nos vestimos assim às sextas”, conta.
O prefeito de Salvador, João Henrique Carneiro, é evangélico, da religião batista. E há quem o acuse de, por isso, favorecer os neopentecostais no projeto de lei, que deve ser votado pela Câmara Municipal na próxima semana, regularizando a situação fundiária dos terreiros. A maioria dos locais onde se praticam os rituais do candomblé até hoje não possui título de propriedade, porque, ao contrário da Igreja Católica, as religiões afro-brasileiras não herdaram terras e ocuparam os espaços possíveis: encostas, vias e matas, necessárias à liturgia. Pais e mães de santo também receberam terras “de boca”, sem documentos.
A possibilidade de regularização deixou os terreiros em festa, mas seus líderes reclamam que, no projeto, existem mais exigências para as religiões de matrizes africanas do que para as outras. Originalmente voltado só para os terreiros, o projeto da prefeitura acabou ampliado para todos os templos religiosos de Salvador.
“Não é verdade, as exigências são as mesmas. Tampouco é verdade que o prefeito favoreça os evangélicos, vejo-o muito respeitoso em relação ao candomblé”, diz o secretário da Reparação de Salvador, Ailton Ferreira, que também pertence ao terreiro de Oxumarê. Ele explica que a lei surgiu como promessa do prefeito João Henrique para compensar a demolição do terreiro Oyá Unipó Neto, na avenida Jorge Amado, em fevereiro do ano passado, por “um equívoco” da prefeitura. E que as críticas acontecem porque, como a regularização dos terreiros era uma reivindicação do candomblé e foi estendida aos outros templos, causou um “ciúme natural”.
Em setembro, os tambores tocarão nos terreiros para o primeiro passo da campanha pelo respeito e pelo reconhecimento do candomblé como religião. Acontecerá em Salvador o I Seminário Nacional sobre Intolerância Religiosa, promovido pelo CEN com apoio do Ministério da Cultura. Todos sabem, porém, que não será uma tarefa fácil mudar 500 anos de preconceito em uma semana. Nem modificar o fato de que, até aqui, o discurso neopentecostal está vencendo a parada.
As religiões neopentecostais roubaram fiéis ao candomblé. “Não oferecemos algumas falas que são ação desse mundo, a bênção relacionada à melhoria de vida”, argumenta Marcos Rezende. “Sem dúvida, as pessoas das classes C, D e E são atraídas por essa teologia da prosperidade. Além disso, o neopentecostalismo utiliza a mídia para atrair novos adeptos, espaço que o candomblé não possui”, avalia o antropólogo Sérgio Ferretti.
Em terra de todos os santos, um político baiano, seguidor do candomblé, pede sigilo para apresentar críticas a seu povo. “Tem radicalismo de ambos os lados”, diz. “Em vez de desconfiar tanto dos evangélicos, devíamos eleger gente do candomblé. Eles têm estratégias, nós também precisamos ter, transcender para o plano político”, propõe. Difícil vai ser trocar os confortáveis abadás de algodão pelo terno e gravata.
Fonte: Carta Capital
A ideia não é partir para o confronto, embora nos últimos anos tenham sido frequentes as agressões de evangélicos, sobretudo fiéis da Igreja Universal e da Evangelho Quadrangular, aos adeptos das religiões de matrizes africanas, nomenclatura adotada pelas gentes da umbanda e do candomblé. A principal meta é mesmo corrigir as estatísticas, a partir do Censo 2010 do IBGE. Com o slogan “Quem é de axé diz que é”, pretende-se conscientizar as pessoas da importância de assumirem o credo em religião afro-brasileira. No último Censo, em 2000, só 0,5% dos soteropolitanos afirmaram ser praticantes da umbanda e do candomblé, ante 18,1% que se declararam evangélicos.
“Essa postura, que se justificava quando o candomblé era perseguido pela polícia, não é mais necessária. Estatisticamente, dá a impressão de que o candomblé está desaparecendo, o que é um engano”, afirma o vereador Gilmar Santiago. Uma das evidências disso seria o aumento do número de terreiros. Nas duas últimas décadas, de acordo com o mapeamento feito pela prefeitura, apareceram 677 novos na capital baiana.
Em compensação, Salvador viu surgir em 2001 um dos maiores templos da Igreja Universal no País, com capacidade para 9 mil fiéis. As baianas do acarajé, figuras-símbolo do candomblé, hoje encontram rivais nas vendedoras de “bolinho de Jesus”, que se recusam a associar o quitute a uma oferenda aos orixás.
Historicamente, o preconceito em relação aos seguidores do candomblé não pode ser atribuído aos protestantes, mas aos primeiros colonizadores europeus, ainda em território africano, segundo estudiosos da religião. Com o tempo, o estigma de que a crença se baseia em feitiços, despachos e magia negra espalhou-se. Mas é inegável que a convivência entre evangélicos, principalmente neopentecostais, e seguidores do candomblé se deteriora nos últimos anos, a partir do lançamento, pelo bispo Edir Macedo, do livro Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios?, que fortaleceu o preconceito e renovou a difusão de mitos sobre as religiões afro-brasileiras.
Na obra, com mais de 3 milhões de exemplares vendidos, retirada das livrarias pela Justiça, o fundador da Igreja Universal acusa os orixás, assim como os espíritos do kardecismo, de serem demônios disfarçados. (Procurada, a direção da Igreja Universal não respondeu às perguntas da reportagem.) Em geral, os bispos neopentecostais se aproveitam da associação clássica entre a figura de Exu e Satanás. Por conta disso, outra iniciativa da campanha movida pelas entidades do movimento negro vai ser a distribuição de uma cartilha como introdução às religiões de matrizes africanas a praticantes de outros credos. Exu será o principal orixá a ser “explicado”.
Em Salvador, na noite da terça-feira 12 de maio, a reportagem de CartaCapital está à mesa com cerca de vinte pais e mães de santo que participam do Fórum Permanente de Religiões de Matrizes Africanas, no terreiro de Oxumarê, do século XIX. Pergunto se esse preconceito não é gerado também pelo fato de o candomblé, em virtude das perseguições policiais que tiveram seu auge na década de 1920, ser uma religião fechada, quase secreta. E a mesa, já bastante desconfiada com a presença da repórter, entra em polvorosa. “Fechada é a Maçonaria”, diz um. “Muito aberta não é, não”, rebate outro. “O terreiro fica aberto o dia todo, não é que nem igreja. Só não entra quem não quer”, defende Marcos Rezende, do CEN, que é também ogã (espécie de administrador) do terreiro anfitrião. “O que não fazemos é proselitismo.”
Em Salvador, são frequentes as notícias de invasões de terreiros por evangélicos com bíblias em punho e agressões verbais aos que andam paramentados com roupa branca, torços (turbantes) e colares de contas coloridas. As queixas são encaminhadas ao promotor Almiro Sena, coordenador do Grupo Especial de Combate à Discriminação do Ministério Público Estadual.
“As pessoas identificadas com o candomblé por suas vestimentas ainda hoje têm dificuldade de acesso a edifícios públicos. São obrigadas, por exemplo, a tirar os torços da cabeça”, relata o promotor Sena, que vê, no entanto, uma diminuição da intolerância nos últimos anos. Na mesa do terreiro de Oxumarê, o Táta (pai de santo) Ricardo Tavares, do terreiro de Lembá, em Camaçari, discorda.
Branco, 1,84 metro de altura, Tavares chama a atenção com suas vestes africanas. Ele conta que seu terreiro já foi invadido por evangélicos, que lhe cuspiram na cara durante o fórum da cidade. “Não sou omisso, dou queixa”, diz o pai de santo, que promove em Camaçari uma campanha de combate à intolerância religiosa e ao racismo, sob o lema “Sou do candomblé. Respeitar é preciso. Gostar, se quiser”.
Lindinalva de Paula, do terreiro Ilê Axé Omin Ewá, no bairro de Praia Grande, conta que os ataques feitos em programas de televisão e por bispos nos púlpitos de fato diminuíram, mas as ações isoladas permanecem. “Numa sexta-feira em Salvador, em um ônibus lotado, há evangélicos que preferem ficar de pé a se sentar ao lado de uma pessoa de branco, porque sabe que nos vestimos assim às sextas”, conta.
O prefeito de Salvador, João Henrique Carneiro, é evangélico, da religião batista. E há quem o acuse de, por isso, favorecer os neopentecostais no projeto de lei, que deve ser votado pela Câmara Municipal na próxima semana, regularizando a situação fundiária dos terreiros. A maioria dos locais onde se praticam os rituais do candomblé até hoje não possui título de propriedade, porque, ao contrário da Igreja Católica, as religiões afro-brasileiras não herdaram terras e ocuparam os espaços possíveis: encostas, vias e matas, necessárias à liturgia. Pais e mães de santo também receberam terras “de boca”, sem documentos.
A possibilidade de regularização deixou os terreiros em festa, mas seus líderes reclamam que, no projeto, existem mais exigências para as religiões de matrizes africanas do que para as outras. Originalmente voltado só para os terreiros, o projeto da prefeitura acabou ampliado para todos os templos religiosos de Salvador.
“Não é verdade, as exigências são as mesmas. Tampouco é verdade que o prefeito favoreça os evangélicos, vejo-o muito respeitoso em relação ao candomblé”, diz o secretário da Reparação de Salvador, Ailton Ferreira, que também pertence ao terreiro de Oxumarê. Ele explica que a lei surgiu como promessa do prefeito João Henrique para compensar a demolição do terreiro Oyá Unipó Neto, na avenida Jorge Amado, em fevereiro do ano passado, por “um equívoco” da prefeitura. E que as críticas acontecem porque, como a regularização dos terreiros era uma reivindicação do candomblé e foi estendida aos outros templos, causou um “ciúme natural”.
Em setembro, os tambores tocarão nos terreiros para o primeiro passo da campanha pelo respeito e pelo reconhecimento do candomblé como religião. Acontecerá em Salvador o I Seminário Nacional sobre Intolerância Religiosa, promovido pelo CEN com apoio do Ministério da Cultura. Todos sabem, porém, que não será uma tarefa fácil mudar 500 anos de preconceito em uma semana. Nem modificar o fato de que, até aqui, o discurso neopentecostal está vencendo a parada.
As religiões neopentecostais roubaram fiéis ao candomblé. “Não oferecemos algumas falas que são ação desse mundo, a bênção relacionada à melhoria de vida”, argumenta Marcos Rezende. “Sem dúvida, as pessoas das classes C, D e E são atraídas por essa teologia da prosperidade. Além disso, o neopentecostalismo utiliza a mídia para atrair novos adeptos, espaço que o candomblé não possui”, avalia o antropólogo Sérgio Ferretti.
Em terra de todos os santos, um político baiano, seguidor do candomblé, pede sigilo para apresentar críticas a seu povo. “Tem radicalismo de ambos os lados”, diz. “Em vez de desconfiar tanto dos evangélicos, devíamos eleger gente do candomblé. Eles têm estratégias, nós também precisamos ter, transcender para o plano político”, propõe. Difícil vai ser trocar os confortáveis abadás de algodão pelo terno e gravata.
Fonte: Carta Capital